Euclides ao Revés

EUCLIDES AO REVÉS – Notas sobre o trabalho de Antonio Bokel

Em uma das pinturas trazidas por Antonio Bokel para essa exposição, tem-se
dois círculos pretos com as mesmas dimensões, aplicados sobre um fundo
branco, dispostos um ao lado do outro, cuidadosamente emoldurados em
madeira, sublinhando os limites do trabalho. Realizado em tinta acrílica num
campo de 1 x 2 metros, discretamente dividido em dois –trata-se de um díptico-
os círculos estão rigorosamente situados em relação ao meio da tela e às suas
extremidades superiores, inferiores e laterais. Tudo nessa pintura levaria a ideia
de rigor, para isso o artista lida com a mesma figura geométrica simples,
enunciando-as com clareza. Mas não é bem isso o que acontece. Sua metade
esquerda, e com ela o círculo esquerdo, foi subdividido, e a parte intermediária, a
terça parte da pintura como um todo, atacada por uma força ascensional, foi
ligeiramente jogada para cima, desmontando e deslocando o círculo, produzindo
dois semicírculos e desalinhando-a do resto. O desnivelamento não é feito de
qualquer modo, mas com exatidão: a ponta superior do semicírculo suspendido
termina exatamente na moldura de madeira remanescente, enquanto a ponta
inferior do semicírculo da esquerda, principia no pedaço levantado da moldura
de madeira.
Em uma outra pintura de fundo bege, onde um retângulo preto encaixado
diagonalmente numa tela de 1,5 x 2 metros, quase apoiado em um círculo preto
encostado no limite inferior da pintura e que está escapando pela lateral direita,
recebe o ataque direto de dois triângulos brancos. O maior, arranjado no eixo da
pintura, é obtido por um recorte literal feito na pintura, que incorpora a parede
fazendo-a invadir e atravessar o retângulo preto até atingir seu ponto médio.
Por sua vez, os dois vértices pontiagudos do triângulo menor afrontam o limite
esquerdo da tela e o retângulo preto, respectivamente.
Essas duas telas bastariam para demonstrar a segurança com que Bokel lida com
os limites da pintura, uma trilha que no nosso país foi mais explicitamente aberta
por artistas como Volpi, Lygia Clark, e que ele explora incorporando e ampliando
lições deixadas pelos norte-americanos da Hard Edge e os franceses do Supports-
Surfaces, decisivos na ruptura do formato quadrangular da pintura, no
pensamento da moldura como parte da pintura, entre outros pontos. Nosso
artista tem um notável domínio da plasticidade de figuras geométricas
elementares, e por meio de operações como recortes, rebatimentos,
sobreposições, combinações assimétricas, vai demonstrando tanto em pintura
quanto em escultura como todas estão implicadas umas nas outras.
Mas há mais do que isso. Parte dos trabalhos recentes de Antonio Bokel,
escolhidos para compor essa exposição, leva a pensar em como seu desejo de
rigor e precisão alimenta-se do erro e do desvio calculado, termos diferentes
entre si. O artista opera sistematicamente com o desvio, a falha e o desastre. À
lógica insofismável da geometria, à segurança e previsibilidade que ela propõe,
ele opõe sobressaltos e sombras. O artista adiciona problemas variados em suas
pinturas e esculturas, como a contraposição entre formas nítidas e borrões, entre
formas produzidas com o auxilio de régua e compasso e manchas resultantes do

extravasamento do gesto, desobrigado de elaborar construções, entre produtos
da indústria e produtos que resultam de manufatura. Em suma, em seus
trabalhos é recorrente a convivência entre vetores divergentes, como os de
natureza impulsiva ou de matriz vernacular, tradicional, e outro alinhado à
racionalidade.
A tensão entre termos contrários aprofunda-se em outras séries, como as
constituídas por pedaços toscos de madeiras encontradas e juntadas em
composições assimétricas, recobertos por cores e figuras geométricas que não
encobrem a matéria que lhes servem de suporte. Digno de menção a fenda
aberta por uma pedra num bloco de madeira pintada de branco com um círculo
preto, uma lembrança da natureza interferindo incisivamente nos propósitos
humanos.
Babel, escultura de 2 metros de altura, que Bokel realizou em 2015, 5 blocos de
cimento irregularmente empilhados em razão das mãos forjadas em bronze em
que estão escorados, realça um dos compromissos do artista com o tempo
presente, qual seja o intervalo abissal existente entre o que se deseja e sua
realização efetiva, entre as edificações gigantescas e reluzentes que
arrogantemente pretendem se impor aos horizontes das metrópoles, e o lixo, as
lutas e as contradições que, cá embaixo, ameaçam e efetivamente as vão
destruindo.

Agnaldo Farias